Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar
A crise das bebidas contaminadas por metanol está longe de ser um problema exclusivo de saúde pública, na verdade, é um sintoma agudo do câncer social em que se transformou o crime organizado no país.
As facções têm se afastado de suas atividades típicas, como o tráfico de drogas, o domínio de cidades e o latrocínio, e expandido suas operações para atividades com aparência de legalidade. Ao contrário das práticas criminosas tradicionais, que funcionam como um tumor localizado, o contrabando, o comércio de combustíveis e o fornecimento de internet se espalham pelo tecido social como uma espécie de metástase, dificultando o diagnóstico da patologia criminal, uma vez que as operações acabam camufladas sob uma aura de legalidade.
Uma adaptação das organizações criminosas que reduz riscos operacionais, facilita a cooptação de autoridades, amplia os lucros e desvia o foco das forças de segurança. Essas, por sua vez, continuam focadas no enfrentamento ao narcotráfico e às atividades violentas, o que é fundamental, mas muitas vezes negligenciam as práticas que vêm se tornando a principal fonte de renda das facções criminosas.
Para se ter uma ideia do volume de negócios paralelos, apenas no ano de 2022 o crime organizado faturou R$ 56,9 bilhões com a exploração de bebidas alcoólicas. Já com o contrabando e a falsificação de cigarros, o lucro foi de R$ 10,3 bilhões. Os combustíveis, por sua vez, representam outra fonte crucial de sustentação das facções, movimentando R$ 61,4 bilhões. Em comparação, o tráfico de cocaína gerou cerca de R$ 15 bilhões no mesmo período. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
CRISE DO METANOL
O metanol nas bebidas é um efeito colateral da expansão dos tentáculos do crime organizado em diversas atividades econômicas no país. A importação, produção, distribuição e comercialização da substância são severamente controladas pela Receita Federal, pelo Ibama e pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). Desde o início do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975, o Brasil não permite seu uso na produção de combustíveis. A opção pelo etanol foi motivada pela alta toxicidade do metanol, que pode causar cegueira e morte mesmo em pequenas doses, seja por inalação ou ingestão. Mas apesar de todo aparato legal o produto chega ao país através de contrabando, principalmente realizado pelo Primeiro Comando da Capital, que utiliza a substância para adulterar combustíveis e ampliar os lucros com as vendas.
A Operação Carbono Oculto1 revelou como a facção paulista utilizava o metanol para aumentar o volume dos combustíveis vendidos nos postos controlados pela organização. O problema é que a operação resultou no fechamento de diversos postos e distribuidoras ligados ao PCC, o que deixou os criminosos com um grande estoque de metanol.
A teoria da ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação) é que, na ausência de sua própria cadeia de comercialização, o PCC pode ter revendido esse estoque para destilarias clandestinas e quadrilhas especializadas na falsificação de bebidas, o que teria desencadeado a série de intoxicações que o país tem acompanhado.2 A utilização do metanol seja para adulterar combustíveis ou bebidas, se deve ao baixo valor do produto que chega ao país através de contrabando escapando das altas taxas de impostos e da burocracia estatal.
DIVERSIFICAÇÃO DAS ATIVIDADES DO CRIME ORGANIZADO
Mas os negócios do crime organizado não se limitam ao contrabando de cigarros, bebidas ou adulteração de combutíveis. Uma das estratégias mais lucrativas das facções é utilizar o controle territorial para monopolizar o fornecimento de serviços básicos à população local, como internet, TV a cabo e gás.
Os criminosos impedem a operação de empresas regulares nas áreas dominadas, barrando a entrada de técnicos e sequestrando a infraestrutura de grandes operadoras para utilizá-la em benefício de suas próprias redes de internet e TV. Em outros casos, simplesmente sabotam cabos e equipamentos, interrompendo o fornecimento de serviços à população.
Mesmo quando as grandes empresas conseguem manter a prestação de serviço nas comunidades controladas, os moradores são coagidos a contratar os serviços oferecidos pelas organizações criminosas.3
As facções também impedem o livre comércio de gás, e os moradores de regiões dominadas só podem adquirir o produto por meio de fornecedores autorizados pelas organizações criminosas, quase sempre por um preço superior ao praticado no mercado.
Mesmo produtos básicos, como o pão francês, já são produzidos por padarias controladas pelas facções, que utilizam matéria-prima roubada e mão de obra contratada sem qualquer obediência às leis trabalhistas. Dessa forma, conseguem oferecer o produto a preços subsidiados pelas demais operações criminosas. Ou seja, ainda que outras padarias consigam funcionar na região, elas não têm condições de competir com os valores praticados pelos criminosos. Estratégia muito utilizada pelo Comando Vermelho e outras facções no Rio de Janeiro.
Outra forma de explorar esse nicho era através da chamada Taxa da Farinha, onde um grupo miliciano obrigava as padarias da favela de Rio das Pedras a comprarem exclusivamente farinha fornecida pelo grupo. Sem contar as taxas de proteção, cobrada de moradores e comerciantes que poderiam chegar R$ 100 semanais. Mesmo a instalação de portões nas casas eram taxadas em R$ 400 e se o morador precisasse estacionar seu carro nas ruas da comunidade a mensalidade custaria R$ 120. 4
Em São Paulo o esquema era ainda mais sofisticado, e as padarias e lojas de conveniência do PCC funcionavam de acordo com todas as normas legais, como empresas normais. Mas eram utilizadas para lavar dinheiro de origem ilegal e utilizavam laranjas para ocultar os verdadeiros beneficiados pelo esquema.5
A RUPTURA DAS ESTRATÉGIAS TRADICIONAIS
As facções brasileiras já não dependem do narcotráfico, do roubo a bancos ou assaltos cinematográficos em ações de domínio de cidades (Novo Cangaço). O crime evoluiu, reduziu os riscos de suas operações, tanto financeiros quanto na segurança de seus integrantes. Diversificaram suas operações, sofisticando suas estratégias, ampliando a atuação para atividades mais lucrativas e dissimuladas. Ações que não são ostensivamente percebidas, que utilizam as sombras da burocracia, manipulações legais, fraudes fiscais e acobertamento de autoridades cooptadas para a manutenção do funcionamento das engrenagens criminosas.
As quadrilhas atingiram um novo patamar, se tornaram máfias articuladas e organizadas de forma garantirem seus lucros aproveitando-se lentidão do Estado e do foco das forças de segurança nas ações mais pirotécnicas e violentas que, atualmente, não passam de apenas uma das vertentes dos diversos braços de atuação das milícias e facções.
Perceber essa nova forma de organização e atuação das forças criminosas é obrigação das autoridades responsáveis por desenvolver políticas e comandar as ações de enfrentamento ao crime organizado no país.
Se é inevitável que as forças de segurança continuem atuando de forma firme e combativa no combate direto à criminalidade violenta, também é evidente que operações isoladas em territórios dominados, prisões pontuais e apreensões de drogas não são suficientes para reduzir o poder das organizações criminosas.
É preciso desenvolver ações investigativas capazes de identificar as redes de influência e proteção dos líderes, mapear o fluxo financeiro e localizar as empresas que operam a serviço das facções e milícias. O verdadeiro impacto sobre o crime organizado só será alcançado com o desmantelamento dessas redes empresariais e econômicas. Provocando o sufocamento financeiro e diminuindo o poder de articulação e capacidade operacional das organizações criminosas.
Esse processo passa, necessariamente, pela identificação e neutralização de políticos, autoridades públicas e empresários que fornecem proteção à cadeia econômica do crime. Todas essas ações precisam resultar em condenações efetivas dos envolvidos, que devem permanecer presos e impedidos de continuar exercendo influência sobre suas organizações.
Ao contrário do que permite a legislação atual, esses criminosos precisam cumprir penas mais longas, de modo a dificultar sua capacidade de rearticulação e enfraquecer a memória corporativa dos grupos, além de desarticular as redes de influência pessoal dos envolvidos.
Se não houver uma ruptura nos tradicionais meios de enfrentamento ao crime organizado, o cenário se tornará cada dia mais nebuloso. O câncer do crime continuará se espalhando pelo país, e sintomas secundários, como os envenenamentos por metanol, serão cada vez mais comuns. Se a doença se agravar demais, talvez não haja mais como salvar o paciente.
REFERÊNCIAS
1Do Comando ao Conglomerado: A Ascensão Empresarial do Crime Organizado – https://aguiarpolicia.com/2025/09/03/do-comando-ao-conglomerado-a-ascensao-empresarial-do-crime-organizado/
2Metanol importado pelo PCC pode ter sido usado em bebidas, diz associação – https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/sp/metanol-importado-pelo-pcc-pode-ter-sido-usado-em-bebidas-diz-associacao/?utm_source=chatgpt.com#goog_rewarded
3Operação combate facções que controlam internet em comunidades do Rio – https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-08/operacao-combate-faccoes-que-controlam-internet-em-comunidades-do-rio
4axa da farinha’: padarias estariam sendo obrigadas a comprar farinha de trigo com a milícia em Rio das Pedras – https://extra.globo.com/rio/casos-de-policia/noticia/2025/04/taxa-da-farinha-padarias-estariam-sendo-obrigadas-a-comprar-farinha-de-trigo-com-a-milicia-em-rio-das-pedras.ghtml
5PCC na Faria Lima: entenda papel de padarias e conveniências no caso – https://www.metropoles.com/sao-paulo/pcc-na-faria-lima-entenda-papel-de-padarias-e-conveniencias-no-caso



