Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar

Você pode imaginar que exista algum limite para a incompetência do Estado brasileiro em lidar com o problema da segurança pública, que as comunidades cariocas dominadas por facções ou a infiltração maciça do PCC nas organizações públicas e privadas de São Paulo sejam o ápice do caos. Mas o Brasil, como profetizou Tom Jobim, não é para amadores. E a situação da cidade de Uiraponga, no Ceará, mostra como a chegada ao fundo do poço pode ser apenas a oportunidade para instalar uma broca de escavação e avançar rumo ao inferno, tudo sob o olhar covarde e conivente de um governo omisso. Sufocados por uma disputa territorial de facções entre facções criminosas os moradores foram obrigados a abandonar seus lares para sobreviver.

O episódio absurdo ocorreu em um vilarejo do município de Morada Nova, no Ceará, localizado a 167 km de Fortaleza. No local, viviam aproximadamente 300 famílias que foram forçadas a deixar suas casas,1 transformando Uiraponga em um cenário desolador, ruas desertas, residências evacuadas as pressas, escola abandonada e o posto de saúde fechado. O lugar que antes era apenas mais um lugarejo bucólico do interior nordestino se tornou uma cidade fantasma, ao estilo dos piores filmes Spaghetti Western, mas sem nenhum Clint Eastwood para socorrer a população.

A realidade do Ceará já era brutal antes mesmo do êxodo forçado de Uiraponga. O estado, governado pelo petista Elmano Freitas, já detinha em 2024 o maior índice de homicídios dolosos do país: 34,42 mortes violentas intencionais a cada 100 mil habitantes, de acordo com o Mapa da Segurança Pública do Ministério da Justiça. Em números absolutos, foram 3.178 homicídios. Fortaleza, por sua vez, conquistou a vergonha de ser a terceira cidade com maior número de assassinatos do país, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro e de Salvador.2 Esses números já anunciavam o caos que a ação das facções estavam causando ao estado já que os confrontos entre sete grupos criminosos eram responsáveis por 90% dos homicídios no estado.3

Elmano Freitas governador do Ceará

O INÍCIO DAS DORES

Mas o que era ruim ficaria pior após a eclosão de conflitos resultantes do rompimento de uma “aliança” entre duas facções, o TCP Cangaço (braço do Terceiro Comando Puro do Rio de Janeiro), liderado por Gilberto de Oliveira Cazuza, conhecido como Mingau e a Guardiões do Estado (GDE), que é nativa do estado, sob o comando de Márcio da Viúva, que exercia suas funções apesar de estar preso.

Uiraponga foi vítima de sua localização, entre seis cidades do Vale do Jaguaribe, o que tornava o lugarejo estratégico para as ações das facções na região. A coexistência dessas facções ocorria desde 2020: elas controlavam o tráfico de drogas, extorquiam comerciantes e produtores rurais, roubavam gado e praticavam pistolagem (assassinatos por encomenda).

Uiraponga

A alcunha de cangaço, que dava nome ao braço do TCP, não é sem motivo. Eles operavam nos moldes do antigo cangaço, fornecendo apoio logístico e informações sobre as ações e movimentos das forças de segurança para garantir a continuidade das atividades criminosas.

A diferença dos grupos modernos é que, ao contrário dos cangaceiros antigos, eles não são nômades. Apesar de circularem pela região executando suas atividades criminosas, os membros das facções têm como base de operação territórios dominados, que utilizam para se esconder e se proteger das investidas da polícia.

O que mudou a aparente paz entre os criminosos foi uma operação da Polícia Civil, em março de 2023, que resultou na prisão de aproximadamente 18 integrantes do TCP Cangaço, incluindo Mingau, que acabou fugindo do estado e se refugiando no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. O enfraquecimento do grupo foi o estopim para que a GDE dominasse os territórios antes controlados pela facção rival, expandindo seu poder no estado.

Em uma ação ousada, Márcio da Viúva determinou que, José Witals da Silva Nazário, conhecido como Playboy, executasse dois aliados próximos à Mingau, Neriano e Thierry. A população que apoiava o TCP Cangaço, em troca de benefícios ou pelo medo, acabou impedindo que a ordem de assassinato fosse cumprida. Antes que os pistoleiros da GDE chegassem ao vilarejo, acessível apenas por estradas precárias, os dois já haviam sido escondidos.

José Witals da Silva Nazário, conhecido como Playboy

A retaliação da organização criminosa foi imediata: um homem que atuava como coiteiro (pessoa que oferece asilo, protege ou favorece criminosos) foi executado em praça pública, com vários disparos de arma de fogo, em um crime testemunhado pelos moradores. Em seguida, foi determinada a expulsão dos habitantes.

O que se seguiu foi uma escalada de intervenções violentas contra a população. De acordo com o inquérito policial que investiga o caso, José Witals (o Playboy) fazia parte da GDE, mas rompeu com a facção e se aliou ao TCP Cangaço. Esse movimento desencadeou uma série de ações violentas para tomar o controle territorial de Uiraponga. Segue trecho do documento:

“A atuação do grupo liderado por Witals não se limitou a ataques contra membros da facção rival, mas se voltou deliberadamente contra a população civil, utilizando a expulsão em massa e a imposição do medo como estratégia de domínio, em uma clara afronta à soberania do Estado e aos direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos, sendo Márcio Jailton da Silva um de seus comparsas”, 4

CIDADÃOS AMEAÇADOS

Em abril de 2025, os criminosos começaram a ameaçar diretamente a população. Os moradores recebiam mensagens por redes sociais, telefonemas ou recados diretos, sempre com o mesmo teor: deveriam deixar o vilarejo com suas famílias, ou coisas piores poderiam acontecer. A principal fonte desses avisos eram as redes sociais.

O evento decisivo para o esvaziamento da cidade ocorreu em 3 de julho, após um violento confronto armado entre os faccionados durante a madrugada. A população, que já estava amedrontada, não enxergou outra saída senão abandonar a localidade. Moradores relataram que as famílias eram ameaçadas até de morte. Além disso, a situação tornou-se tão crítica que a prefeitura chegou a suspender os serviços básicos.

No vilarejo permaneceram apenas aqueles que não tiveram condições de sair: pessoas muito idosas, sem recursos financeiros ou que não tinham outro lugar para se refugiar. Hoje, em Uiraponga, as casas ainda mostram sinais da fuga apressada. Nos lares abandonados às pressas, móveis, objetos pessoais e até brinquedos podem ser encontrados, evidências de uma tragédia semelhante à vista em locais devastados por catástrofes naturais ou em zonas de guerra.

Um retrato emblemático do descaso, da leniência e da tolerância das autoridades governamentais diante da atuação do crime organizado no país. Um prelúdio mórbido de uma realidade que pode se espalhar por outras cidades e regiões, caso as autoridades não escolham enfrentar de forma efetiva organizações que já se transformaram em forças narcoterroristas.

A RESPOSTA DO ESTADO

O que a população esperava como resposta do Estado para garantir seus direitos fundamentais nunca veio. Em vez de buscar auxílio para proteger seus cidadãos, uma das primeiras ações da prefeitura foi disponibilizar um caminhão de mudanças para que as pessoas abandonassem o local. A medida fez com que a população se sentisse ainda mais acuada e abandonada. Afinal, se seus governantes não podiam pensar em uma solução menos extrema do que obrigá-los a deixar seus bens e suas raízes, desintegrando toda uma comunidade, o que pessoas comuns, sem recursos ou a força estatal, poderiam fazer?

Mas a prefeitura foi além. No dia 1º de agosto, a prefeita Naiara Carneiro Castro (PSB) publicou um decreto reconhecendo a “situação anormal e emergencial”, que soou como uma rendição às facções. No documento, foi reconhecida a interrupção dos serviços de saúde e de outros equipamentos públicos, em razão da falta de segurança que impossibilitava o acesso da população a serviços essenciais, como limpeza pública, iluminação, coleta de lixo e atendimento social.

Naiara Carneiro Castro (PSB)

Os atendimentos de saúde foram transferidos para unidades em funcionamento em outras localidades. Os alunos da rede municipal foram realocados para escolas consideradas seguras. Assim como os serviços de assistência social, também foram deslocados para outras áreas.

A resposta do governo estadual não foi mais animadora. A Secretaria de Segurança Pública informou que vem realizando ações para prender os mandantes e executores dos crimes na região e que equipes das Polícias Civil e Militar estão ocupando, por tempo indeterminado, a área, realizando operações de saturação para reforçar a segurança. Nada além do protocolar e burocrático.

Até o momento, nenhum plano estratégico foi traçado para resolver a situação aguda da cidade e devolver à população o direito de ocupar suas propriedades com segurança. Nenhuma ação conjunta ou força-tarefa foi desenvolvida para reagir à altura dos acontecimentos.

Mesmo após uma pomposa operação, denominada Regnum Fractus (Reino Quebrado), na qual foram cumpridos 11 mandados de prisão preventiva e 22 mandados de busca e apreensão domiciliar, resultando na apreensão de aparelhos celulares e na prisão de 12 suspeitos, a ação policial não foi suficiente para devolver o lugarejo aos seus verdadeiros donos. Os moradores permanecem refugiados em seu próprio país, deslocados pelo poder do crime organizado.

ERROS RECORRENTES

O caos nordestino não é fruto de um caso isolado é apenas amplificação de um fenômeno que se espalhou pelo Brasil, o domínio de comunidades e regiões por organizações criminosas. Talvez o isolamento da comunidade e a precariedade dos serviços oferecidos pelo governo do estado, tenham sido determinantes para que se chegasse nessa situação extrema, mas o que aconteceu em Uiraponga não é muito diferente do que podemos testemunhar no resto do país.

Primeiro, temos a frouxidão e a precariedade do sistema prisional, que permite que criminosos continuem comandando seus bandos mesmo estando confinados. Foi o que ocorreu neste caso, quando Márcio da Viúva, líder da GDE, ordenou a execução de rivais mesmo estando em uma unidade prisional.

Enquanto o Estado permitir que líderes de facções sigam controlando suas organizações, ainda que cumprindo pena, o efeito dissuasório das sentenças permanecerá enfraquecido. Isso contribui para que os faccionados não enxerguem a prisão como um grande obstáculo, já que, mesmo sob a tutela do poder público, conseguem conservar poder, influência e segurança — bastando apenas esperar por uma oportunidade para voltar às ruas.

E, no Brasil, essa oportunidade muitas vezes vem de forma muito menos dramática do que uma fuga de prisão. Na verdade, é muito mais seguro para um criminoso esperar ser beneficiado por uma decisão judicial ou por uma medida de desencarceramento, como as saídas temporárias ou uma progressão de regime. Como já testemunhamos diversas vezes.5

Outro problema estrutural é a nossa legislação, que torna o combate efetivo ao crime organizado praticamente impossível. Não apenas pela sua inadequação processual, que permite manobras jurídicas quase infinitas e dificulta, sobretudo, o desmantelamento das estruturas de apoio das facções, como empresas de fachada e autoridades públicas que as apoiam ou acobertam. As pequenas vitórias das forças de segurança se transformam em verdadeiros milagres diante das barreiras burocráticas, processuais e políticas.

Esse quadro é agravado por uma geração de juristas, intelectuais e operadores do direito devotos das interpretações mais revolucionárias e progressistas da lei, que enxergam nos criminosos doces criaturas desviadas do caminho da bondade apenas por serem vítimas da desigualdade e da opressão capitalista.

Ou seja, muitos daqueles que deveriam encarar os faccionados como o que realmente são, criminosos cruéis, impiedosos e violentos, preferem tratá-los como vítimas. O resultado é o sofrimento de comunidades inteiras, e talvez o exemplo mais agudo atualmente seja o de Uiraponga.

Outro fator comum dos estados brasileiros com os piores índices relacionados à segurança pública é que eles são dirigidos por políticos de esquerda, que insistem em políticas públicas que não atacam a raiz do problema. Esses políticos por estarem comprometidos com agendas políticas progressistas, como o desencarceramento, redução de penas, justiça restaurativa, impedimento de intervenções policiais em comunidades e liberação das drogas. Acabam de forma direta ou indireta, aumentando o sentimento de impunidade para criminosos comuns e proporcionando o fortalecimento das facções, quando se trata de enfrentamento ao crime organizado.

Hoje os três estado brasileiros com os piores índices de mortes violentas intencionais são :

Amapá

  • Taxa de MVI: ~ 45,1 por 100 mil habitantes
  • Governador: Clécio Luís, do Solidariedade

Bahia

  • Taxa de MVI: ~ 40,6 por 100 mil habitantes
  • Governador: Jerônimo Rodrigues, do PT

Ceará

  • Taxa de MVI: ~ 37,5 por 100 mil habitantes
  • Governador: Elmano de Freitas, do PT

Todos dirigidos por governos de esquerda.

O melhor desempenho de governos de direita no trato com os problemas da criminalidade pode ser confirmado pelo levantamento realizado no Atlas da Violência do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Os dados abrangem o período de 2003 a 2022 e incluem, portanto, cinco mandatos completos em cada uma das 27 unidades da federação. Ao todo, os números correspondem ao equivalente a 513 anos de governos analisados.

Os resultados apontam que os estados sob a liderança de governos mais à direita apresentaram melhores taxas anuais de homicídios por 100 mil habitantes: 24 nos estados governados por partidos de direita, contra 30,7 nos estados governados pelo centro e 32,1 nos estados administrados pela esquerda. 6

O ENFRENTAMENTO

Claro que o problema do crime no Brasil é generalizado, e a simples inclinação ideológica não é suficiente para resolvê-lo. Mas já serve como um bom indicativo de que políticas mais conservadoras e ortodoxas relacionadas à questão têm mais sucesso do que a implementação de estratégias que contrariam o senso comum e a lógica básica, apostando na ideia de que criminosos não teriam autonomia sobre suas próprias decisões ruins e que, no fundo, estariam ansiosos para se tornarem cidadãos honestos e cumpridores da lei.

Para a retomada de comunidades como Uiraponga, é fundamental que o Estado recupere o controle do território, e isso só pode ser feito por meio de uma ação de força, que resulte tanto na prisão de criminosos quanto no enfrentamento direto das forças de resistência das facções.

Entretanto, caso essas ações não sejam acompanhadas de uma ocupação total, com o estabelecimento definitivo dos serviços públicos básicos, como a melhoria do acesso à comunidade, o atendimento médico, as estruturas bancárias, o saneamento, o policiamento ostensivo e outros equipamentos essenciais, será apenas questão de tempo até que os grupos criminosos voltem a se reorganizar e retomem o domínio do local.

Foi exatamente isso que ficou demonstrado na experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro. Ao abandonarem os policiais nas comunidades, todo o progresso obtido rapidamente ruiu.

verdade é que o recrudescimento da crise de segurança pública que vivemos não será revertido da forma rápida como seria necessário. Ele dependerá de uma tomada de atitude que se afaste das abordagens meramente político-eleitorais e das soluções fáceis.

A mudança deve passar essencialmente por uma transformação de mentalidade, pelo abandono das políticas lenientes contra o crime e pela imposição de punições efetivas, que impeçam criminosos de voltar às ruas de forma precoce ou de continuar controlando suas organizações de dentro do sistema prisional.

Será preciso também sufocar financeiramente as facções e identificar todos os agentes a seu serviço, hoje infiltrados em todas as esferas de poder desta porca república. Afinal criminosos não conseguiriam dominar toda uma região sem conivência ou proteção de agentes públicos.

A corrupção é um dos principais aliados do crime organizado, mas no Brasil não é apenas a corrupção política ou financeira, a perversão mais grave é da alma, do pensamento. Que normaliza a aceita pacificamente, que cidadão sejam expulsos de suas casas pelo domínio dos narcoterroristas enquanto os responsáveis por sua segurança enfrentam o problema como se fosse algo corriqueiro, como um buraco no asfalto ou a construção de uma escola. A tomada de uma cidade deveria ser um escândalo nacional, mas, no Brasil, é uma nota de rodapé na história de um país de joelhos diante do crime organizado.

REFERÊNCIAS

1Vilarejo do Ceará vira ‘território-fantasma’ após expulsão de moradores por facções – https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/09/27/vilarejo-do-ceara-vira-territorio-fantasma-apos-expulsao-de-moradores-por-faccoes.ghtml

2Ceará tem a maior taxa de homicídios do Brasil em 2024, aponta Ministério da Justiça – https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/06/11/ceara-tem-a-maior-taxa-de-homicidios-do-brasil-em-2024-aponta-ministerio-da-justica.ghtml

3Confrontos entre 7 facções causam 90% dos homicídios no Ceará, diz Elmano – https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/07/09/confrontos-entre-7-faccoes-causam-90percent-dos-homicidios-no-ceara-diz-elmano.ghtml

4Vilarejo do Ceará vira ‘território-fantasma’ após expulsão de moradores por facções – https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/09/27/vilarejo-do-ceara-vira-territorio-fantasma-apos-expulsao-de-moradores-por-faccoes.ghtml

5Quem são os chefões do PCC soltos pela Justiça que continuam no crime – https://www.metropoles.com/sao-paulo/pcc-chefoes-soltos-justica-crime

6Levantamento: governadores de direita têm melhor desempenho no combate ao crime – https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/levantamento-governadores-de-direita-tem-melhor-desempenho-no-combate-ao-crime/