Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) está planejando mais um capítulo decisivo em sua epopeia pelo desencarceramento em massa. Depois da súmula vinculante publicada em 2023 pelo Supremo Tribunal Federal, que tornou obrigatória a aplicação do regime aberto e a substituição da prisão por restrição de direitos nos casos de tráfico privilegiado, o CNJ produziu um relatório1 apontando que até 110 mil presos podem ser colocados em liberdade, já que seriam réus primários — mesmo que o documento não aponte se os condenados se enquadram em todos os critérios exigidos pela lei. A desculpa é sempre a mesma: desafogar o sistema carcerário e garantir condições mínimas de salubridade para os encarcerados.

Direitos Humanos, Vítimas Ignoradas e a Imprensa Militando

Defender o esvaziamento dos presídios como forma de resolver os problemas do sistema pode até ser uma maneira de proteger e garantir os direitos dos condenados. O problema é que essa visão ignora aqueles que deveriam ser a principal preocupação do Estado brasileiro: as vítimas.

Para muitos estudiosos e agentes públicos, as pessoas que estão nos presídios são tratadas como se fossem sempre vítimas de um sistema injusto, que persegue indivíduos por sua etnia ou condição social. Enclausurados nas masmorras, eles não teriam chance de ressocialização — um conceito quase mágico, quase dogmático. E, em nome dessa crença, esquece-se de um dos principais objetivos das prisões: punir os criminosos e trazer alguma forma de justiça para as vítimas.

O relatório já está sendo celebrado, elogiado e defendido por diversos portais de notícias, como a nova panaceia da justiça — uma chance de quebrar a opressão contra os “pobres condenados” por tráfico de drogas. A estratégia é sempre a mesma. As reportagens são ilustradas com a descrição de casos pontuais, em que pessoas foram condenadas a duras penas de prisão mesmo portando pequenas quantidades de drogas, ou em situações que deixam dúvidas sobre a real prática do tráfico.2

É claro que qualquer injustiça precisa ser revisada, mas será que nossa Justiça é tão incompetente a ponto de colocar atrás das grades mais de 100 mil pessoas em desacordo com a legislação? Se esse é o caso, isso contraria as teorias do nosso ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que recentemente afirmou que a polícia brasileira prende mal — e, por isso, a Justiça acaba libertando os criminosos.

Ministro Ricardo Lewandowski

Reforçando o jargão de que no “Brasil se prende muito e se prende mal”, os jornalistas e colunistas de plantão empurram goela abaixo de seus leitores a narrativa de que o país ocupa a terceira posição no ranking global de maior população carcerária do planeta — mesmo estando em sétimo lugar em número total de habitantes 3

Contudo, nunca informam que, dos mais de 900 mil presos, apenas 360.430 estão cumprindo pena em regime fechado e mais de 100 mil em regime semiaberto.4 Sem contar que, quando se leva em consideração o tamanho da população total em relação ao número de pessoas encarceradas — ou seja, a taxa por 100 mil habitantes — o Brasil cai para a 15ª colocação no ranking, atrás de países como El Salvador, Cuba, Uruguai e Estados Unidos.5 Avaliar a população carcerária sem levar em conta essa taxa é ignorância ou desonestidade — já que todos os índices mais relevantes, quando tratamos de criminalidade e segurança pública, utilizam essa métrica como padrão. Isso porque ela permite comparações entre regiões com áreas e populações diferentes,6ajuda a medir os riscos individuais,7 facilita o monitoramento ao longo do tempo e evita a manipulação política dos números absolutos.8 No caso da imprensa brasileira pode ser um combo doloso, de ignorância
seletiva e desonestidade por motivação ideológica.

Tabela 01 – Taxa de encarceramento por 100mil habitantes (Fonte – https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison_population_rate?field_region_taxonomy_tid=All)
Tabela 02 – Números de encarceramento. As taxas são por 100.000 habitantes. (fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_incarceration_rate#cite_note-WorldPrisonBrief-1)

A Realidade da Justiça Brasileira

A realidade mostra outra coisa. Atualmente, no Brasil, é muito difícil que uma pessoa presa por portar — ou até mesmo negociar — pequenas porções de drogas venha a sofrer punições severas do Judiciário. O entendimento por penas alternativas e pela liberação de pessoas nessas condições se alastra pela consciência dos operadores do Direito de forma epidêmica e sem controle. Em grande medida, pela influência das políticas e teorias defendidas e propagadas pelo próprio CNJ.

Por exemplo, em um folder sobre o programa Fazendo Justiça9 o CNJ aponta como um de seus destaques, até o mês de abril de 2024, a realização de mais de 1,5 milhão de audiências de custódia, com uma redução de 14,65 pontos percentuais na taxa de presos provisórios desde 2015. Ou seja, apenas uma de suas políticas deixou de manter presas 678.699 pessoas entre 2015 e agosto de 2024. Nesse período, foram realizadas aproximadamente 1.722.681 audiências de custódia, e pelo menos 39% dos presos em flagrante delito foram soltos.

Mas eles foram além: em 4.986 casos, foi determinada a prisão domiciliar. Sem contar com mais de 70 mil casos em que foram aplicadas penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade.10 Ir para a cadeia em nosso país não é uma missão fácil atualmente, principalmente para criminosos comuns. Mas a situação pode ser bem diferente caso você escolha criticar certas autoridades, apoiar grupos políticos não aprovados ou participar de manifestações do lado “errado” da balança ideológica. Nesses casos, as penas podem ser bem duras e nenhum jurista, jornalista, sociólogo ou especialista em segurança pública se manifestará pelo seu desencarceramento, seja na audiência de custódia, em prisão preventiva ou no cumprimento da pena.

Soluções Invertidas: Prisões Precárias e o Preço da Criminalidade

Não podemos desconsiderar que as prisões brasileiras, na maioria dos casos, são verdadeiras sucursais do inferno e não apresentam condições mínimas de conforto e higiene para seus moradores. E como, no nosso sistema, as penas são de restrição de liberdade — e não de tortura —, é fundamental que nossas instalações penitenciárias tenham infraestrutura mínima para que os apenados cumpram suas sentenças.

Nesse sentido, a solução mais lógica seria o investimento na construção de novas unidades, na ampliação das vagas no sistema e na reforma ou desativação das penitenciárias que não apresentem os requisitos adequados para abrigar presos.

Mas o nosso Supremo Tribunal Federal, que deveria estar cuidando da guarda e preservação da Constituição, avança sobre as atribuições do Executivo e, em 2023, determinou que a União e os estados enfrentassem a situação caótica dos presídios. Como? Promovendo mutirões para reduzir o número de presos “injustamente” — mais uma ação de desencarceramento.

Obviamente, se não tivermos mais presidiários cumprindo pena, o problema da superlotação das unidades prisionais desaparece. Mas liberar presos para resolver os problemas estruturais do sistema prisional segue uma lógica perversa e equivocada, que afundará ainda mais nosso país nessa crise de criminalidade.

Aliás, essa é a mesma lógica que levou o mesmo tribunal a descriminalizar, na prática, a posse de maconha em até 40 gramas. O problema da prisão de usuários ou pequenos traficantes foi “resolvido” — pelo menos para o sistema judiciário, para a burocracia. Nas ruas, porém, a situação permanece inalterada, e os prejuízos provocados por essas atividades apenas se agravaram.

E a defesa do desencarceramento não é nenhuma teoria da conspiração, tampouco uma política praticada nos bastidores ou em reuniões secretas. Políticos, juízes, artistas, jornalistas e toda espécie de intelectual orgânico expõem com orgulho suas teorias sobre as vantagens de colocar criminosos em liberdade e esvaziar as cadeias.

Para eles, os presídios brasileiros são desumanos e insalubres, baseando-se em relatórios de organismos internacionais como a ONU e a OEA — produzidos por outros burocratas, não eleitos, que, na maioria das vezes, nunca pisaram em solo brasileiro. O argumento central é a defesa dos direitos humanos e a denúncia da violação sistemática dos direitos dos encarcerados.

Mas não seria mais lógico e prudente melhorar o sistema prisional, em vez de desmontá-lo? E quem defende os direitos das vítimas desses condenados?

Alguns argumentam que essas medidas seriam aplicadas somente aos crimes menores e não violentos. Que o problema das nossas instituições penais é que muitos presos estão encarcerados por delitos dessa natureza e que mantê-los nas cadeias não contribuiria em nada para a redução da criminalidade, apenas sobrecarregaria o sistema.

Mas a verdade é que, no Brasil, a permanência de presos em regime fechado só ocorre, na maioria das vezes, nos casos de reincidência ou crimes de grande repercussão e gravidade. E mesmo nesses casos, é comum que os condenados recebam benefícios precoces, como redução de pena por trabalho ou leitura de livros, além da progressão de regime — seja para o semiaberto, aberto ou até mesmo domiciliar.

Outro argumento utilizado para a propagação das teses de desencarceramento são os altos custos financeiros e a suposta ineficiência do sistema. O custo para a manutenção de um preso pode variar de R$ 1.100 a R$ 4.300 por mês.11 12 Além disso, o custo de um único presídio federal de segurança máxima é de aproximadamente R$ 40 milhões.

Mas é imprescindível considerar o altíssimo custo do crime para a economia brasileira. De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as perdas com o crime, em 2016, ultrapassaram os R$ 370 bilhões — o equivalente a 6% do PIB. Ou seja, colocar criminosos nas ruas pode ser uma estratégia ainda mais antieconômica.

El Salvador, Bukele e a Desconexão da Elite Judiciária Brasileira

Já quando o assunto é a ineficiência do encarceramento, um exemplo extremo colocou por terra todas as teorias dos mais devotos sacerdotes do desencarceramento: as políticas colocadas em prática pelo presidente Nayib Bukele, em El Salvador. Uma das ações mais emblemáticas foi a construção da maior prisão da América Latina, o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), com capacidade para 40.000 detentos, projetado para abrigar membros das facções mais violentas do país, como a MS-13 e o Barrio 18. 13

Presidente Nayib Bukele

No total, o governo Bukele colocou atrás das grades mais de 85.000 pessoas, o que representa cerca de 1,7% da população total de El Salvador. 14 O resultado do encarceramento em massa foi uma redução espantosa nas taxas de homicídio: em 2015, eram 106,3 homicídios por 100.000 habitantes; em 2024, o país registrou a marca impressionante de 1,9 homicídios por 100.000 habitantes — o que colocou a nação entre as mais seguras do mundo.15

O ponto aqui não é defender cegamente as ações de Bukele como solução para o Brasil, mas demonstrar um fato que, para a maioria das pessoas, é absolutamente lógico: quando os criminosos estão na cadeia, eles não podem cometer crimes. E o governo salvadorenho demonstrou essa lógica na prática.

Mesmo diante das evidências e dos dados, o CNJ não abre mão de suas investidas para a ampliação das políticas de desencarceramento. Com um relatório que abre a possibilidade para a colocação de mais de 100.000 presos condenados nas ruas, o conselho demonstra uma desconexão total com as aspirações do cidadão comum.

Uma dissonância que pode ser alimentada pela distância de seus membros em relação à vida cotidiana das cidades brasileiras: detentores de altos salários, trabalhando em confortáveis gabinetes e morando em seguros condomínios fechados, os integrantes do CNJ não sentem na pele a insegurança e o medo do crime que dominam o cotidiano do cidadão médio.

Talvez por isso tanta empatia com os criminosos — e praticamente nenhuma com suas vítimas. Essa desconexão, combinada com a paixão pelas doutrinas críticas do direito penal, que enxergam os criminosos como vítimas, é a fórmula perfeita para nos afogar ainda mais na crise de criminalidade que o brasileiro banca com o próprio sangue.

Referências:

1Tráfico Privilegiado Política Penal e Drogas – Boletins analíticos – https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/05/2025-05-05-boletim-trafico-privilegiado-final.pdf

2Estudo aponta que 110 mil réus primários por tráfico poderiam ter pena reduzida – https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/05/estudo-aponta-que-110-mil-reus-primarios-por-trafico-poderiam-ter-pena-reduzida.shtml

3É preciso revisar penas sob a Lei de Drogas – https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/05/e-preciso-revisar-penas-sob-a-lei-de-drogas.shtml

4RELATÓRIO DE GESTÃO SUPERVISÃO DO DEPARTAMENTO DE MONITORAMENTO E FISCALIZAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO E DO SISTEMA DE EXECUÇÃO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS – DMF – https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/10/23902dd211995b2bcba8d4c3864c82e2.pdf? utm_source=chatgpt.com

5Highest to Lowest – Prison Population Rate – https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison_population_rate?field_region_taxonomy_tid=All

6How are crime rates calculated? – https://www.memphis.edu/psi/analysis/calculate.php

7National Crime Victimization Survey – https://www.icpsr.umich.edu/web/pages/NACJD/guides/victimization/crime-rates.html

8Defining Per Capita, Rates, and Comparisons – https://www.robertniles.com/stats/percap.shtml

9Folder Fazendo Justiça – https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/folder-geral-fazendo-justica.pdf

104 em cada 10 presos são soltos após audiência de custódia – https://www.poder360.com.br/seguranca-publica/4-em-cada-10-presos-sao-soltos-apos-audiencia-de-custodia/

11Presos custam até R$ 4 mil por mês a Estados- https://www.osul.com.br/presos-custam-ate-r-4-mil-por-mes-a-estados/?utm_source=chatgpt.com

12Gasto do governo com penitenciárias federais em 2023 foi o maior dos últimos 4 anos – https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/gasto-do-governo-com-penitenciarias-federais-em-2023-foi-o-maior-dos-ultimos-4-anos/?utm_source=chatgpt.com

13The El Salvador mega-prison at the dark heart of Trump immigration crackdown – https://www.theguardian.com/world/2025/apr/30/el-salvador-cecot-mega-prison-trump?utm_source=chatgpt.com

14Nayib Bukele – https://en.wikipedia.org/wiki/Nayib_Bukele?utm_source=chatgpt.com

15Homicidios en El Salvador – https://es.wikipedia.org/wiki/Homicidios_en_El_Salvador?