POR: LUIZ FERNANDO RAMOS AGUIAR
Os arroubos autoritários do Supremo Tribunal Federal extrapolaram todos os limites do razoável esta semana, quando o ministro Alexandre de Moraes, em represália à Justiça espanhola, negou a extradição do traficante de drogas Vasil Georgiev Vasilev. O búlgaro foi preso no Brasil transportando 52 quilos de cocaína. Um detalhe sombrio: o pedido de prisão preventiva havia sido emitido pelo próprio Moraes em 18 de fevereiro de 2025, em Ponta Porã (MS), após um mandado de prisão expedido por ele mesmo.
A negativa do ministro à Espanha foi motivada pela recusa daquele país em extraditar para o Brasil o jornalista Oswaldo Eustáquio, acusado de crimes de opinião — traduzidos por Moraes como ameaça, perseguição, incitação ao crime e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Uma decisão movida por interesses evidentemente políticos e ideológicos. Uma vergonha jurídica e diplomática sem precedentes na história do Brasil.
Não podemos negar que os métodos jornalísticos de Eustáquio são eticamente questionáveis, e seu estilo, muitas vezes, de mau gosto e grosseiro. Mas, ao que consta, isso não é suficiente para considerá-lo um criminoso digno de extradição.

Para aumentar a pressão, Moraes foi além: intimou a embaixadora da Espanha no Brasil, María del Mar Fernandez-Palacios Carmona, a prestar esclarecimentos à Justiça brasileira — um gesto inusitado que pode funcionar como catalisador para uma crise diplomática.
A RESPOSTA ESPANHOLA
Eustáquio, classificado pela mídia tradicional como blogueiro bolsonarista, está exilado na Espanha desde o fim de 2023, quando se tornaram públicos dois mandados de prisão preventiva expedidos por Moraes. A Justiça espanhola, pela segunda vez, negou sua extradição. Em 14 de abril de 2025, a 3ª Seção de Direito Penal da Audiência Nacional, em Madri, considerou que os supostos crimes descritos pela Justiça brasileira tinham “motivação política” e estavam protegidos pela liberdade de expressão.
Para piorar, os juízes espanhóis declararam que o pedido brasileiro não apresentava “atos concretos, violentos ou intimidatórios” atribuídos a Eustáquio — e que havia risco real de perseguição ideológica caso ele retornasse ao Brasil.
Mas a negativa espanhola não deveria surpreender os nossos supremos magistrados. A própria legislação brasileira, alinhada a princípios internacionais de direitos humanos, proíbe a extradição em casos de risco por motivos políticos, ideológicos ou de opinião. É o que estabelece o artigo 82, §3º da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) e o artigo 5º, LII da Constituição Federal:
Art. 5º, LII:
“Não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião.”
Portanto, considerando que o acordo de extradição entre Brasil e Espanha é baseado na reciprocidade, a decisão espanhola de negar o pedido brasileiro é juridicamente previsível. E nossos “iluministros” sabiam disso.
O CRIMINOSO LIBERADO POR MORAES
Vasil Georgiev Vasilev é um criminoso comum, sem envolvimento político. Foi preso em flagrante por transportar 52 quilos de cocaína em uma mala, na cidade de Barcelona, em 2022. Moraes, que decretou sua prisão preventiva por tráfico internacional, agora revoga a extradição e concede a ele prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica.

A justificativa? Suposta violação do princípio da reciprocidade, cláusula do Tratado de Extradição Brasil-Espanha (1988), incorporado ao ordenamento jurídico pelo Decreto nº 99.340/1990. Uma decisão desproporcional, que sacrifica a segurança pública nacional em nome de uma retaliação política.
Claro, o traficante internacional vai cumprir todas as determinações da Justiça brasileira… Ou será que não?
Na sanha de capturar um adversário político, Moraes coloca em liberdade um perigoso traficante internacional. Preso domiciliarmente. O que pode dar errado?
A REAÇÃO DOS ESPECIALISTAS
Para Antenor Madruga, ex-diretor do DRCI no Ministério da Justiça, a decisão é atípica. Segundo ele, o STF já negou extradições antes com base em perseguição política — mas essa avaliação cabe ao Executivo, não ao Judiciário. E esse é um dos pontos mais graves: a expansão das prerrogativas do ministro sobre atribuições do Poder Executivo.
A professora Maristela Basso, da USP, foi ainda mais incisiva: “A reciprocidade se faz todos os dias, não caso a caso”. Para ela, o Brasil usou um caso grave — tráfico internacional — como moeda de troca por uma decisão política. Um desvirtuamento completo das funções do Judiciário, com consequências severas para a segurança jurídica e a estabilidade institucional.
Mas há quem defenda a decisão. O jurista Pedro Lazzarini Neto, doutor em Direito Penal, argumenta que ambos os casos envolvem crimes previstos na legislação ordinária — portanto, estariam no mesmo patamar jurídico. Assim, segundo ele, condicionar uma extradição à outra respeitaria o princípio da reciprocidade.
Minha pergunta a ele seria: quais são os artigos do Código Penal brasileiro violados por Eustáquio? Até o momento, o Congresso Nacional não tipificou o crime de “fake news”. Além disso, um jornalista sem ligação com militares, sem participação em grupo armado e sem uso de violência teria enorme dificuldade em ser enquadrado como alguém que tenta abolir, de forma violenta, o Estado Democrático de Direito.
A RESPOSTA DA AGU
A Advocacia-Geral da União articula, com apoio de advogados espanhóis, um novo recurso. O objetivo é convencer Madri de que Eustáquio não é um mero opositor político, mas um agente ativo de desinformação, que teria inclusive intimidado delegados da Polícia Federal. Nos bastidores, no entanto, o Ministério da Justiça admite: as chances de sucesso são mínimas.
E vale a reflexão: desde quando criticar instituições públicas — ou mesmo publicar notícias falsas — se tornou crime? Ainda que mentiras sejam condenáveis, o custo é baixo demais diante da liberdade de expressão. Não se trata de defender Eustáquio ou validar suas ideias, mas de garantir que qualquer cidadão tenha o direito de expressar suas opiniões — inclusive aquelas que nos desagradam. Essa é a base de qualquer democracia que se preze.
REPERCUSSÃO NO SENADO
A decisão de Moraes provocou reações no Congresso. Senadores manifestaram desconforto e indignação com o STF.
- Flávio Bolsonaro acusou o Supremo de libertar traficantes enquanto persegue opositores políticos.
- Rogério Marinho ironizou: “A justiça, que deveria ser cega, agora só enxerga o que convém.”
- Sérgio Moro foi direto: “O Brasil nada ganha dando abrigo a um traficante de drogas.”
Mas o ponto mais sensível foi a convocação da embaixadora espanhola, uma medida diplomática incomum e que, normalmente, seria conduzida pelo Itamaraty — não por um ministro do STF. Isso evidenciou mais uma vez o avanço do Judiciário sobre as competências do Executivo, agravando ainda mais a crise institucional que já se arrasta há anos.

CONCLUSÃO
Esse caso expõe as crescentes tensões entre os Poderes da República. Uma crise institucional que, nos últimos anos, deixou de ser silenciosa e passou a interferir em temas sensíveis da política externa brasileira.
De um lado, um jornalista polêmico acusado de “crimes contra a democracia”. Do outro, a mais alta corte do país, que usa um traficante internacional como moeda de troca. Um cenário que escancara os paradoxos da justiça seletiva e dos limites do poder.
A pergunta que fica é: até onde pode ir o poder de um juiz da Suprema Corte em nome da defesa da “democracia”?
