Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar
No dia 20 de fevereiro de 2025, o STF decidiu que as guardas municipais poderão realizar ações de segurança urbana, inclusive policiamento ostensivo comunitário. Essa decisão transforma definitivamente as guardas municipais em verdadeiras forças policiais, atendendo demandas antigas da categoria. Isso significa que, na prática, os agentes municipais agora podem fazer buscas pessoais e contribuir de forma decisiva para a prevenção de delitos, exercendo funções semelhante as da Polícia Militar.
O relator, ministro Luiz Fux, seguiu uma tese inovadora, defendida também pelo ministro Alexandre de Moraes, ao afirmar que, como a Constituição não define com exatidão o papel das guardas, não cabe ao Judiciário impor limites excessivamente restritivos à sua atuação. Para o ministro Fux, essa medida representa um importante instrumento para os municípios combaterem a insegurança de maneira mais dinâmica e eficiente.
Nem os ministros abraçaram a tese. Cristiano Zanin e Edson Fachin discordaram, com o argumento de que as guardas municipais têm atribuições específicas – voltadas à proteção dos bens, serviços e instalações municipais – e que não devem assumir funções investigativas ou de caráter repressivo, que são reservadas às polícias civis e militares. Ou seja, mantendo o problema estrutural do sistema policial brasileiro que é ciclo incompleto de polícia que, diga-se de passagem, só permanece em atividade no Brasil.
A decisão tomada pelo Supremo é resultado de um longo debate que começou em 2010 e passou por diversas instâncias judiciais, refletindo o cenário atual, onde a diminuição dos efetivos das polícias civis e militares tem impulsionado a expansão das guardas municipais. Decisões recentes do STJ e do próprio STF já indicavam a necessidade de reavaliar a função desses profissionais, especialmente quando se trata da validade de provas obtidas durante ações de policiamento ostensivo.
Ao integrar as guardas municipais ao Sistema Único de Segurança Pública, a corte deixou claro que, embora esses agentes ganhem novas atribuições, eles devem sempre atuar sob o controle externo do Ministério Público, garantindo a legalidade e o respeito aos direitos fundamentais de todos os cidadãos.
Mas existem uma série de questões que não foram abordadas pelo Supremo. Como será o treinamento das guardas? Quais serão as instâncias de controle da atividade policial exercida por elas? Como serão resolvidos os conflitos de competência e atuação entre as guardas municipais e as polícias militares? Sem contar as questões financeiras e os altos custos envolvidos na criação e manutenção de forças policiais – quesitos que podem ser impeditivos para a maioria dos municípios do país.
O problema dessa decisão é que ela resulta de uma decisão judicial e não de um processo legislativo. No processo de desenvolvimento de uma lei, que possui diversas fases, o projeto de lei passa obrigatoriamente por várias comissões. Muitas vezes, ocorrem audiências públicas nas quais especialistas e profissionais da área podem expor as complexidades do processo e fornecer soluções com base tanto no conhecimento técnico quanto na experiência prática. Além disso, um projeto de lei ou de emenda constitucional passa por extensas discussões e modificações que podem prever e rever medidas, as quais acabam sendo negligenciadas quando a decisão é tomada por um pequeno grupo de pessoas que, ainda que bem-intencionadas, não têm a experiência ou o conhecimento para tomar esse tipo de decisão.
Estão passando o carro na frente dos bois. Mesmo que o estabelecimento das guardas municipais como policiais seja uma medida necessária, ele deveria ser fruto de uma mudança legislativa, respeitando todas as fases necessárias para uma mudança desse calibre, que pode impactar não apenas a vida das pessoas que serão servidas pelas novas forças policiais, mas também a dos profissionais que farão parte delas.
Sem o estabelecimento de limites adequados para controle, organização e contratação dos profissionais que serão incluídos nas guardas, corremos o risco de que alguns prefeitos cedam à tentação de tratar suas novas forças policiais como milícias pessoais, utilizando a força de seus agentes para garantir interesses políticos e pessoais. É preciso lembrar que, em municípios menores ou mais afastados dos grandes centros, a presença do Ministério Público, do Judiciário e de delegacias é precária, o que dificulta em muito o estabelecimento de medidas de contenção e controle das guardas.
A verdade é que os verdadeiros gargalos da segurança pública permanecem ignorados. A criação das polícias municipais trará para o sistema policial brasileiro mais uma meia polícia, já que a questão do ciclo completo – que acaba com a divisão entre a polícia investigativa e a ostensiva – continua esquecida. Além disso, existe o risco real de criar novos atritos entre as forças policiais, estabelecendo atribuições concorrentes entre as polícias municipais e as polícias militares.
Para estabelecer um sistema policial que seja eficiente para garantir a segurança e a tranquilidade pública, não basta apenas o reconhecimento das guardas municipais como polícias. É fundamental que os gargalos mais importantes do sistema sejam resolvidos, para que as forças policiais tenham autonomia, independência e o ferramental necessários para combater o crime e atender de forma adequada a população. E, principalmente, que garantam sua atuação, mesmo que contrariem interesses políticos, econômicos e ideológicos, mesmo que sejam dos chefes de governo.
A autonomia das forças também não é tratada na decisão. Atualmente, os comandantes das forças policiais são escolhidos politicamente, pelos chefes do Executivo. Eles não têm mandato, e sua presença à frente das corporações depende exclusivamente da vontade e benevolência dos governadores e, agora, dos prefeitos. Ou seja, caso uma força policial inicie ações que melhorem a segurança pública, mas contrariem os interesses pessoais ou políticos do chefe do Executivo, o comandante da força é imediatamente exonerado e substituído, geralmente por alguém mais alinhado ao político. O mesmo ocorre quando a polícia judiciária começa a investigar quadrilhas ou pessoas que possam, de alguma forma, impactar a imagem ou as ações do governo; as investigações acabam prejudicadas pela substituição dos dirigentes da força e dos policiais responsáveis por elas.
Para estabelecer um sistema policial que seja eficiente para garantir a segurança e a tranquilidade pública, não basta apenas o reconhecimento das guardas municipais como polícias. É fundamental que os gargalos mais importantes do sistema sejam resolvidos para que as forças policiais tenham autonomia, independência e o ferramental necessários para combater o crime e atender de forma adequada a população. E principalmente que garantam sua atuação, ainda que contrariem interesses políticos, econômicos e ideológicos dos chefes de governos dos quais as corporações fazem parte.


