Trégua entre PCC e CV: Um Panorama Completo e Seus Possíveis Efeitos

Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar

Podemos estar entrando em uma nova era para o crime organizado no Brasil. Após anos de violentos enfrentamentos pelo controle de territórios, rotas de tráfico, vias de contrabando e domínio de presídios, as facções começam a entender que a melhor opção para sobreviver às investidas do Estado é o fortalecimento de suas organizações por meio da formação de um consórcio criminoso.

Esse movimento representa uma ameaça central para o Estado brasileiro e não pode ser ignorado por nossas autoridades. A pacificação entre as principais forças criminosas do país pode elevar o nível de organização e profissionalismo a patamares jamais presenciados. Livres das guerras por territórios e com sua força bélica concentrada na proteção de suas atividades criminosas, o enfrentamento ao crime organizado pode se tornar ainda mais difícil.

A estratégia não é nova e já foi utilizada tanto por grupos nacionais quanto por organizações criminosas ao redor do mundo. Um exemplo clássico de sucesso no Brasil foi a união da cúpula do Jogo do Bicho, que ocorreu na década de 1970, no Rio de Janeiro. Em vez de se digladiarem em disputas sangrentas por territórios e pontos de aposta, os “contraventores” promoveram uma aliança entre as principais quadrilhas do jogo e firmaram acordos para a divisão das áreas de exploração. O resultado foi que, com a diminuição da violência, eles expandiram suas operações, aumentaram sua rede de influência e fortaleceram a atividade ilegal, ampliando seus lucros e a credibilidade das apostas junto aos seus consumidores.[1]

Mas países desenvolvidos também sofreram as consequências de consórcios mafiosos. Na década de 1980, os Estados Unidos estavam sob o jugo de cinco famílias mafiosas principais, todas com origem em organizações criminosas da Itália. Como forma de manter seus negócios longe de disputas custosas e da atenção da mídia e das autoridades, essas famílias estabeleceram uma organização com todos os atributos de um cartel empresarial global, operando sofisticados esquemas de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e movimentação de recursos em contas suíças, além de mesclar atividades ilegais com negócios legais, financeiros e técnicos altamente elaborados.[2]

Esse consórcio criminoso tinha sua sede principal em Nova York e funcionava como um órgão legislativo, delimitando territórios, decidindo quais atividades criminosas seriam exploradas e distribuindo-as entre as famílias. Também resolvia disputas e, em alguns casos, ordenava execuções de membros que não cooperavam com as ordens e regras da organização.[3]

Mafiosos em Nova York

No Brasil estamos acostumados, se é que isso é possível, a conviver com as violentas disputas entre facções criminosas e milícias, que transformam comunidades inteiras em verdadeiros campos de batalhas, principalmente no Rio de Janeiro. Mas outras regiões do país já experimentam o fenômeno, fruto da expansão das operações criminosas pelo país.

Contudo, nos últimos anos, começamos a enxergar mudanças no cenário do crime organizado brasileiro: a tomada da região amazônica pelas facções; a chegada de grupos historicamente concentrados na região Sudeste ao Norte e Nordeste; e a crescente utilização de negócios legais para lavagem de dinheiro.[4]

Mas a recente trégua entre duas das maiores facções criminosas do país — o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) —, lideradas por Marcola (Marco Willian Herbas Camacho) e Marcinho VP (Márcio dos Santos Nepomuceno), respectivamente, pode se tornar a guinada mais significativa da história da segurança pública no Brasil.

Marcola e Marcinho VP

Os dois grupos decidiram cessar as hostilidades e unir forças em um acordo que já está sendo implementado em cinco estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Ceará e Amazonas. O cessar-fogo, que vem sendo negociado desde 2019, tem objetivos claros e preocupantes, além de potencial para reconfigurar o panorama da criminalidade no país.

OS OBJETIVOS DA TRÉGUA

A trégua entre PCC e CV não é um mero cessar-fogo, mas uma estratégia bem articulada com dois objetivos principais:

Combater as Regras Rigorosas do Sistema Penitenciário Federal:

Ambos os líderes, Marcola e Marcinho VP, estão presos no sistema penitenciário federal, conhecido por suas regras mais duras, como a restrição de visitas íntimas e o controle rígido sobre a comunicação entre presos, o que dificulta o comando das facções por suas lideranças.

As estratégias utilizadas para contornar o problema da comunicação sempre foram pontuais, como o uso de advogados e familiares como mensageiros ou o contrabando de celulares para dentro dos presídios. No entanto, uma solução sistêmica seria muito mais eficiente para tornar o fluxo de informações mais fluido e otimizar a administração das quadrilhas por meio das ordens das lideranças presas.

A união das facções visa pressionar o Estado para afrouxar essas regras, buscando melhorias nas condições de encarceramento. Isso inclui a possibilidade de retomar visitas conjugais e reduzir o rigor no cumprimento das penas. Para atingir esses objetivos, a aliança entre as organizações permitirá o fomento e a realização de rebeliões e fugas de forma mais abrangente e coordenada, tomando instituições penais que, muitas vezes, estão sob o controle de facções rivais.

Compartilhamento de Rotas de Tráfico:

Outro ponto central do acordo é o compartilhamento das principais rotas de tráfico de drogas. O PCC controla a Rota Caipira, que transporta cocaína da Bolívia, Colômbia e Peru pelo interior de São Paulo até portos como o de Santos, de onde a droga é enviada para Europa e África. Já o CV domina a Rota do Solimões, no Amazonas, que é crucial para o escoamento de drogas pela região Norte.

Com a trégua, as duas facções podem expandir seus negócios de forma coordenada, aumentando sua influência no tráfico internacional. Passariam a funcionar como uma grande indústria de produção e distribuição, podendo negociar melhores preços e condições com seus clientes, uma gigantesca join venture do narcotráfico.

Mapa da Rota caipira. Fonte: Da Cadeia à Fronteira: a transição territorial do Primeiro Comando da Capital – Pedro Diogo

A Expansão da Trégua

Inicialmente, a trégua estava limitada aos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde as duas facções têm maior presença. No entanto, nos últimos meses, o acordo foi estendido para outras regiões, especialmente no Norte e Nordeste, onde o CV é predominante. Em estados como o Ceará, por exemplo, líderes comunitários relataram a emissão de ordens internas (conhecidas como “salves”) que proíbem ataques contra membros do PCC, indicando que a trégua já está sendo implementada na prática.

No Amazonas, onde as duas facções já estiveram em conflito aberto – como no massacre de 2017, quando 56 presos do PCC foram mortos por aliados do CV –, a inteligência local confirmou que a trégua está em vigor, embora ainda haja focos de tensão em áreas estratégicas. Mas o sucesso das transações originadas a partir do acordo deve ser suficiente para neutralizar as oposições internas e os conflitos localizados, o que pode ser decisivo para a cristalização do novo modelo de negócio.

PREOCUPAÇÕES DAS AUTORIDADES

A trégua entre PCC e CV tem gerado preocupação entre as forças de segurança e autoridades públicas. O secretário de Segurança Pública do Amazonas, Marcus Vinícius Oliveira de Almeida, destacou que a união dessas organizações criminosas pode ter reflexos negativos para a população, especialmente no curto prazo. Ele argumenta que ambas as facções deveriam ser classificadas como organizações terroristas, dada a escala de suas operações e o impacto de suas atividades na sociedade.

Além disso, há o temor de que a trégua facilite planos de fuga de líderes presos ou até mesmo a consolidação de uma joint venture do crime, em que o PCC atuaria como a “mente” do negócio, com uma abordagem mais sofisticada, enquanto o CV funcionaria como o “braço armado”. Essa possibilidade foi discutida em uma reunião recente envolvendo o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e o secretário de Segurança do Rio, Victor Santos.

EFEITOS IMEDIATOS E DE LONGO PRAZO

No curto prazo, a trégua pode resultar na redução da violência em presídios e nas ruas, especialmente em regiões onde as facções estavam em conflito. E é muito provável que isso aconteça, afinal, esse é um dos pontos fundamentais para o sucesso do acordo. A diminuição dos confrontos entre as facções nas cidades e favelas já teria esse efeito, criando a impressão de que a situação do crime está melhorando.

No entanto, essa melhora pontual não significa uma redução da criminalidade, mas sim uma reorganização das atividades criminosas, tornando-as mais sofisticadas e estruturadas, ao mesmo tempo em que expandem sua atuação e influência.

A aliança entre PCC e CV pode resultar em:

Aumento do Poder das Facções:

A coordenação entre as duas maiores organizações criminosas do país pode levar à expansão do tráfico de drogas e de outras atividades ilícitas, tanto no Brasil quanto no exterior. Para viabilizar a utilização dos recursos provenientes dessas atividades, a infiltração das facções em negócios legais de fachada também pode se ampliar consideravelmente, favorecendo a cooptação de agentes públicos e privados para a manutenção da aparência de legalidade desse tipo de empreendimento.

Desafios para as Forças de Segurança:

As autoridades terão que lidar com uma aliança mais forte e organizada, capaz de pressionar o sistema prisional e desafiar o Estado de forma mais eficiente.

O fortalecimento das organizações terá entre os seus objetivos a ampliação dos quadros de funcionários de sistema de justiça criminal e das forças policiais na folha de pagamento das organizações criminosas. Seja para a proteção dos criminosos dentro do sistema penitenciário, para acobertamento das operações de lavagem de dinheiro ou para antecipação de operações policiais ostensivas ou investigativas.

IMPACTO NA POPULAÇÃO

Embora a trégua possa reduzir conflitos internos entre as facções, ela também pode levar a um aumento da violência contra civis e da influência do crime organizado em comunidades vulneráveis. Se com as facções em disputa comunidades inteiras já vivem sob o domínio do crime.

CONTEXTO HISTÓRICO E NEGOCIAÇÕES

A trégua entre PCC e CV não é um evento estanque; trata-se do resultado de anos de negociações e de mudanças no cenário do crime organizado, principalmente da necessidade de articulação das facções para ampliarem seus domínios e reduzirem os conflitos entre si. As origens da aliança remontam a 2019, quando Marcola e outras lideranças do PCC foram transferidos para o sistema penitenciário federal. A partir desse momento, as facções começaram a buscar uma aliança para enfrentar o Estado. Foi nesse período que se atribuiu a Marcola uma de suas frases mais representativas dos objetivos do crime organizado: “O inimigo não é o crime, mas o Estado”. O argumento foi utilizado para justificar a união das facções.

Durante as negociações, representantes do CV pediram ao PCC que financiasse ações jurídicas em benefício de ambos, incluindo a contratação de juristas renomados para elaborar pareceres que embasassem pedidos de redução no rigor das penas. O PCC teria liberado R$ 10 milhões de seus cofres para custear essas ações, uma prova de boa fé, que demonstra o caráter estratégico e bem planejado da trégua.

CONCLUSÃO

A trégua entre PCC e CV pode se tornara principal e mais significativa transformação no cenário do crime organizado no Brasil. Se consolidada, ela pode levar a uma maior coordenação entre as facções, aumentando seu poder e influência tanto dentro quanto fora dos presídios. Aumentando a capilaridade das organizações no território brasileiro e otimizando a conquista de novos territórios pela ação sinérgica dos grupos.

Todos esses fatores terão impactos profundos na segurança pública, permitindo que as principais forças criminosas do país atuem em convergência, de forma a expandir seus domínios como uma força hegemônica, já que não haverá mais a necessidade de disputas por territórios ou estruturas logísticas para o tráfico de drogas. Essa aliança pode resultar em um domínio ainda maior das facções sobre a população, especialmente nas regiões mais vulneráveis, onde já controlam grande parte das comunidades, estabelecendo suas próprias regras de convívio social e impondo obediência aos grupos criminosos, totalmente à revelia do Estado.

Políticas adequadas para isolamento das lideranças das facções nas penitenciárias, que impeçam sua comunicação com seus liderados e entre eles precisam ser adotadas de forma firme e rápida pelos responsáveis, é uma medida imediata que pode dificultar as negociações e diálogos entre os grupos. Mas se medidas estruturais mais sérias não estiverem no horizonte dos políticos e das autoridades judicias, o prognóstico para essa crise não será nada animador. Enquanto integrantes importantes dessas quadrilhas continuarem sendo liberados de suas penas por tecnicidades jurídicas, como foi o caso famoso criminoso André do Rap, ou forem beneficiados por maluquices jurídicas, como saídas temporárias ou progressões de penas, o destino da segurança pública no Brasil será cada dia mais sombrio.

A nova estratégia pode levar as facções a um novo estágio de prática criminal e à criação de um conselho do crime semelhante ao que existiu nos Estados Unidos na década de 1980, quando cinco famílias mafiosas praticamente detinham o monopólio do crime organizado. Esse é um pesadelo que não precisamos enfrentar. Mas, sem respostas coordenadas do Estado para combater e punir os criminosos, não sobrará alternativa para a população, a não ser permanecer rendida ao crime organizado.

Além das referências utilizadas assinaladas no texto foram usadas informações das seguintes matérias:

1 – Vista com preocupação, trégua entre CV e PCC inclui rotas compartilhadas e combate às regras de penitenciárias federais –

2 – Marcola e Marcinho VP firmam uma trégua entre PCC e Comando Vermelho – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/02/13/marcola-e-marcinho-vp-firmam-uma-tregua-entre-pcc-e-comando-vermelho.htm?cmpid=copiaecola

3 – Marcola e Marcinho VP firmam trégua entre PCC e CV em cinco estados, incluindo Ceará, diz site –

4 – PCC e CV articulam trégua para pressionar o governo –

5 – Exclusivo: PCC e CV articulam trégua e planejam ofensiva histórica –


[1] O partido político mais organizado do RJ é o jogo do bicho’, diz Capitão Guimarães em série que entrevista bicheiros sobre a ‘máfia brasileira – https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/11/01/o-partido-politico-mais-organizado-do-rj-e-o-jogo-do-bicho-diz-capitao-guimaraes-na-serie-vale-o-escrito-que-entrevista-bicheiros-sobre-a-mafia-brasileira.ghtml

[2] THE MAFIA OF THE 1980’s: DIVIDED AND UNDER SEIGE – https://www.nytimes.com/1987/03/11/nyregion/the-mafia-of-the-1980-s-divided-and-under-seige.html

[3] THE MAFIA OF THE 1980’s: DIVIDED AND UNDER SEIGE – https://www.nytimes.com/1987/03/11/nyregion/the-mafia-of-the-1980-s-divided-and-under-seige.html

[4] Mapa das facções no Brasil: PCC e Comando Vermelho disputam hegemonia do crime em 9 estados – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/08/22/mapa-das-faccoes-no-brasil-pcc-e-comando-vermelho-disputam-hegemonia-do-crime-em-9-estados.htm