Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar
Um novo fenômeno criminal tem dominado as favelas cariocas. Após influenciar o repertório dos bailes funk, especialmente com os proibidões, e lançar tendências que transformaram jovens do Leblon e do Recreio em imitadores de faccionados, a expansão das denominações neopentecostais tem causado uma verdadeira metamorfose na expressão da religiosidade nas comunidades cariocas, impactando, a reboque, até mesmo membros de facções criminosas, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro (TCP).
Muitos estudiosos e especialistas têm denominado os adeptos dessa nova prática como “traficantes evangélicos”. E não é para menos, já que os próprios traficantes se identificam como soldados de Jesus, por mais paradoxal que essa autodenominação possa parecer. Ao contrário do que acontecia antigamente, quando alguém se convertia em uma igreja evangélica, os novos “convertidos” não experimentam uma ruptura com os padrões de comportamento cruéis e criminosos. Pelo contrário, utilizam os valores cristãos para justificar suas ações e pedir proteção a Deus.
De acordo com Viviane Costa, em seu livro Traficantes Evangélicos:
o Deus do traficante, tirado à cosmovisão do Deus guerreiro, se apresenta no Deus dos Exércitos evangélico – quase – na mesma medida em que tem sido representado por São Jorge (Ogum).
CRESCIMENTO DOS EVANGÉLICOS
Um exemplo extremo dessa expressão religiosa enviesada é a situação do chamado Complexo de Israel. Dominado pelo TCP, o cenário da comunidade é marcado por pinturas de versículos bíblicos nos muros e por uma estrela de Davi em neon, instalada no alto de uma caixa d’água em Parada de Lucas, uma das cinco comunidades que compõem o complexo.[1] O próprio nome da comunidade teria sido dado por Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Arão, um dos líderes da facção e comandante da região, em referência à terra prometida por Deus ao povo hebreu.[2]
Para entender essa mudança no contexto religioso dos faccionados é fundamental entender a expansão das igrejas evangélicas no Brasil e sua influência, principalmente nas comunidades mais carentes. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em dezembro de 2023, revela o crescimento dos templos religiosos no Brasil nos últimos 20 anos. Entre os 124.529 estabelecimentos existentes no país em 2021, 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais, seguidos por 19% evangélicos tradicionais e 11% de católicos. A Assembleia de Deus possui o maior número de templos, 14%. [3]

A grande expansão do número de evangélicos no Brasil ocorreu entre os anos de 2000 e 2010, quando a proporção de adeptos dessa religião saltou de 15,5% para 22,2% da população. Para se ter uma ideia do impacto desse crescimento, em 1991 os evangélicos representavam apenas 9% da população do país.[4]
A penetração das igrejas evangélicas se concentrou principalmente entre as populações mais jovens e pobres. Favelas e comunidades são os locais onde grande parte dos templos religiosos se estabeleceram. Diferentemente da Igreja Católica, que exige a presença de sacerdotes com extensa preparação, as igrejas evangélicas podem ser fundadas por lideranças leigas, o que facilita a criação de novos templos.
A multiplicidade de visões e leituras do cristianismo, expressa pelo grande número de denominações evangélicas, também contribuiu para atender os mais diversos perfis de fiéis, amplificando o poder de representatividade das igrejas e fornecendo as pessoas ambientes religiosos mais adaptados às realidades locais, atendendo suas expectativas e que se adaptando de forma mais eficiente aos diferentes matizes culturais de cada comunidade.
O grande crescimento das igrejas evangélicas também trouxe efeitos colaterais indesejados. A religião evangélica deixou de ser apenas uma opção de uma parcela específica da população, marcada por comportamentos distintos e por um distanciamento social de outros grupos. Com o tempo, a religião fundiu-se à cultura popular, e o comportamento ascético, comum nos anos 1990, acabou se diluindo no processo de expansão. Se nas últimas décadas do século XX era impensável classificar um evangélico como não praticante, atualmente é comum encontrar crentes que, embora frequentem esporadicamente reuniões e cultos, não seguem comportamentos antes considerados obrigatórios na religião, como a abstinência de álcool ou tabaco.
Essa diluição das tradições e valores da religião resultou em uma prática religiosa que se manifesta mais como um identificador cultural. Nesse contexto, os fiéis não consideram necessária a transformação de comportamentos, especialmente quando envolvem práticas econômicas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Assim, criminosos que cresceram em um ambiente religioso evangélico muitas vezes não percebem a incoerência entre suas práticas criminosas e os valores de sua religião. E chegam a obrigar seus “soldados” a participarem de cultos ou de se absterem de participar de religiões consideradas heréticas, como a umbanda e o candomblé.
RELIGIÃO E CRIMINALIDADE
Tradicionalmente, os criminosos no Rio de Janeiro sempre se identificaram com as religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, ou com uma forma de sincretismo religioso que envolvia o catolicismo. Era comum a associação com São Jorge, o santo guerreiro, que simbolizava força, coragem e proteção — valores fundamentais para a prática do crime organizado. Os criminosos frequentemente realizavam rituais de proteção contra investidas de seus inimigos, fossem forças policiais ou facções rivais. Uma das práticas mais comuns era o chamado “fechamento de corpo”. Esse ritual tinha o objetivo de afastar o mal, seja espiritual, físico ou ambos. Quando o foco era a proteção física, o beneficiário acreditava estar imune a ataques de facas, armas de fogo ou até mesmo veneno de cobra.[5]
A religiosidade entre criminosos não é uma característica exclusiva dos brasileiros. A máfia italiana, por exemplo, sempre manteve uma estreita ligação com a religião católica. Mafiosos tradicionalmente frequentavam missas, batizavam seus filhos e ostentavam amuletos e símbolos com representações de santos da Igreja Católica. Alguns rituais católicos, como a escolha de padrinhos para os filhos, eram usados para fortalecer os vínculos entre os membros da organização. A relação era tão evidente que as lideranças da Igreja na Sicília chegaram a proibir a presença de padrinhos em batizados na cidade de Catânia, numa tentativa de reduzir a influência da máfia na região.[6]

POR QUE TRAFICANTES EVANGÉLICOS?
Apesar da presença de elementos religiosos em diversas manifestações criminosas ao longo do tempo, nunca antes a denominação das organizações criminosas foi diretamente associada à religião de seus integrantes. Mesmo os traficantes do Rio de Janeiro, com uma longa tradição de práticas ligadas ao candomblé ou de devoção a São Jorge, jamais foram classificados como “traficantes católicos” ou “traficantes do candomblé”. Da mesma forma, as máfias italianas nunca foram chamadas de “máfias católicas”. Então, por que no Brasil os membros de facções estão sendo classificados como “traficantes evangélicos”?
A verdade é que os evangélicos no Brasil sempre foram alvo de discriminação, principalmente por parte da mídia e da academia, que frequentemente os consideram como pessoas atrasadas, sem cultura, ingênuas ou ignorantes. As representações de evangélicos em filmes, novelas e outras manifestações culturais quase sempre são caricaturais e estereotipadas. Os líderes religiosos evangélicos são frequentemente descritos como aproveitadores, exploradores da fé ou, na melhor das hipóteses, como pessoas bem-intencionadas, mas completamente equivocadas. Mesmo com o crescimento da representatividade evangélica na sociedade os meios do mainstream não melhoram suas impressões sobre os integrantes dessa religião, com honrosas exceções. Observa-se uma necessidade de desconstruir ou diminuir qualquer benefício trazido pela adoção da religião, seja nas favelas ou no “asfalto”.
De acordo com Esbérard (2017), a religião atua como uma barreira significativa contra o uso de bebidas alcoólicas e outras substâncias. As vertentes protestantes, especialmente as pentecostais, historicamente associam o consumo de álcool a comportamentos inadequados, promovendo uma forte tendência à abstinência entre seus adeptos. Além disso, os valores religiosos funcionam como um fator protetor, influenciando diretamente o estilo de vida dos fiéis e reforçando práticas alinhadas à doutrina da igreja, incluindo a abstinência de substâncias como o álcool[7]. Contudo, estudos dessa natureza são frequentemente ignorados ou subestimados em sua importância.
O PERIGO DA RADICALIZAÇÃO RELIGIOSA DO NARCOTRÁFICO
A classificação pode estar imbuída de preconceito e de um sentimento residual de antipropaganda contra o protestantismo evangélico, mas não se pode ignorar que a associação entre as facções do narcotráfico e uma religiosidade fanática pode ser um fator de séria preocupação ao tratarmos da crise de segurança pública brasileira. Uma característica que reforça essa preocupação são as investidas das forças criminosas contra templos e expressões de outras religiões, principalmente aquelas de matriz africana. Tornou-se fato corriqueiro que, nas comunidades onde o crime se identifica com a religião evangélica, casas de umbanda e terreiros enfrentem dificuldades para exercer suas atividades. Em alguns casos, esses espaços são destruídos ou impedidos de continuar funcionando.

Ainda não existem indícios suficientes de que as facções criminosas estejam fundindo suas atividades ilícitas a ações fundamentalistas religiosas. No entanto, a possibilidade de grupos fortemente armados, com controle de territórios em grandes cidades e influência direta sobre a vida de populações inteiras, é uma realidade que deve manter as autoridades em alerta. Caso essas organizações decidam tornar suas crenças religiosas obrigatórias nas regiões dominadas, poderemos testemunhar, no Brasil, o surgimento de um movimento semelhante aos praticados por milícias e grupos terroristas islâmicos, que impõem a sharia às pessoas sob seu domínio.
Nesses locais, nem mesmo variações mais moderadas do islamismo podem coexistir com as práticas religiosas dos extremistas. As pessoas são obrigadas a regular sua conduta pelas regras impostas pelos criminosos em praticamente todos os aspectos de suas vidas, desde suas vestimentas até a forma como prestam culto particular. Qualquer falha em cumprir essas regras pode ser punida segundo a vontade e os caprichos dos criminosos, sempre sob o manto da suposta proteção da vontade divina.
Além dos prejuízos a população uma justificação religiosa para as atividades criminosas pode funcionar como um anabolizante para organização e funcionamento das facções. Contar com exercito de criminosos que, ao invés de estarem comprometidos apenas com o hedonismo ou ganhos financeiros, está fanatizada por uma causa divina irá amplificar a determinação e a ousadia dos soldados do tráfico, que estarão debaixo de decretos divinos para a pratica de suas ações.
REFERÊNCIAS
[1] A expansão pelo Brasil dos traficantes que se veem como ‘soldados de Jesus’ – https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce8nwrp253jo
[2] Traficantes e ‘pastor’: a facção que exige conversão e práticas religiosas – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/07/26/entenda-o-complexo-de-israel-no-rio-de-janeiro.htm?cmpid=copiaecola
[3] Crescimento dos estabelecimentos religiosos no país é liderado por igrejas pentecostais e neopentecostais – https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/14594-crescimento-dos-estabelecimentos-religiosos-no-pais-e-liderado-por-igrejas-pentecostais-e-neopentecostais
[4]Número de evangélicos cresce 61% no Brasil, diz IBGE – https://www.terra.com.br/noticias/brasil/numero-de-evangelicos-cresce-61-no-brasil-diz-ibge,c0addc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html?utm_source=clipboard
[5]Um ritual de proteção para “fechar o corpo” liga tradições religiosas diferentes no Brasil – https://pt.globalvoices.org/2016/08/06/um-ritual-de-protecao-para-fechar-o-corpo-liga-tradicoes-religiosas-diferentes-no-brasil/
[6] Igreja proíbe padrinhos em batizados na Sicília por causa da máfia. Entenda – https://revistamonet.globo.com/Noticias/noticia/2021/10/igreja-proibe-padrinhos-em-batizados-na-sicilia-por-causa-da-mafia-entenda.html
[7] ESBÉRARD, Laísa Casasanta. A influência da religião no comportamento de consumidores de baixa renda. Rio de Janeiro, 2017. Trabalho de Conclusão de Curso – Departamento de Administração, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
